GEOMETRIA DIFERENCIAL COMEMORA SETENTA ANOS DE UM MATEMÁTICO HUMANISTA

A X ESCOLA DE GEOMETRIA DIFERENCIAL, a ser realizada na UFMG entre 20 e 24 de julho de 1998, prestará homenagem ao Professor Manfredo Perdigão Do Carmo pelo seu 70o aniversário.

O Prof. Manfredo foi um dos primeiros matemáticos brasileiros que se dedicou à pesquisa em geometria diferencial no Brasil. Escreveu vários livros que foram traduzidos para o inglês e o alemão e que são hoje uma referência para o estudo dessa área. Orientou cerca de 25 teses de doutorado e diversas de mestrado. Foi pioneiro, no Brasil, no estudo de superfícies mínimas, tem trabalhos relevantes publicados em importantes revistas especializadas nacionais e do exterior. Desde 1966 é pesquisador Titular do IMPA.

“Recebi um e-mail da Professora Susana Fornari para “escrever alguma coisa” sobre o Professor Manfredo do Carmo. Ela finaliza a mensagem, escrevendo “aguardo sua resposta positiva”. Ao ler este irrecusável convite, imediatamente, pensei que não teria dificuldades em cumprir a tarefa. Afinal, além de ter recebido o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de Alagoas, o Professor Manfredo foi o orientador do meu doutorado, temos feito trabalhos juntos e acima de tudo, ele é um grande amigo. Só percebi que enganara-me profundamente naquele pré-julgamento, quando retomei as minhas memórias e me vi envolvido por elas, de tal forma, que não encontrava a linguagem certa para o texto que me propunha a escrever. Por certo, o laço afetivo, que me liga ao Manfredo, era o impedimento. Daí, em conversa com uma colega da UFAL, surgiu a idéia de que essa homenagem, ao nosso querido Professor Do Carmo, fosse escrita em estilo jornalístico. Assim sendo, eis aí a íntegra da entrevista, que ela realizou comigo”(Hilário Alencar, da Universidade Federal de Alagoas-UFAL)

Embora, para a maioria das pessoas, o processo de envelhecimento traga medos, anseios e incertezas, essa expectativa nem sempre se confirma no plano dos acontecimentos. Os sábios, por exemplo, são sujeitos que contradizem o senso comum, porque, para eles, o acúmulo dos anos representa o alcance de um estágio privilegiado de síntese. É o momento do amadurecimento das idéias e da colheita dos frutos intelectuais de uma trajetória de vida fecunda. Este é o caso do Professor Manfredo Perdigão do Carmo, um matemático de refinado talento para a Geometria Diferencial, que está comemorando setenta anos, junto com toda a comunidade científica da área.

Não obstante ser um matemático de vocação tardia, o Professor Manfredo do Carmo, ao longo de sua carreira acadêmica, tem prestado inestimável contribuição à esta ciência no Brasil e no mundo. Hoje, aos setenta anos, este mestre é, para as gerações mais jovens, repositório vivo da tradição secular, que constitui o pensamento matemático, em geral, e a Geometria Diferencial, em particular. À semelhança da Arca de Noé, ele, ao mesmo tempo, que acolhe todas as diferenças, também as estimula à generosa recriação. Assim como a arca simboliza o coração humano, a referência ao Manfredo do Carmo como um homem-arca procura dá conta também da doçura, do carinho e da atenção dedicada por ele aos seus alunos e colegas.

SOB A EVOCAÇÃO DO TESTEMUNHO

No Brasil, Manfredo do Carmo tem formado gerações de pesquisadores matemáticos, que hoje atuam em todo território nacional. No Nordeste, em particular, esse seu papel formador tem tido uma importância capital. Na entrevista, a seguir, um dos seus ex-alunos, o conterrâneo Hilário Alencar, da Universidade Federal de Alagoas, fala sobre sua convivência acadêmica com o mestre Manfredo, nos permitindo entrever, de uma perspectiva singular, a trajetória humana e intelectual do homenageado:

  • O que veio primeiro em sua carreira acadêmica ? A vocação ou Manfredo ?
    A minha vocação para a matemática é anterior, porém a definição pela área da Geometria Diferencial se deve efetivamente à influência de Manfredo.
  • Como conheceu o Professor Manfredo do Carmo ? Como ele se tornou seu orientador ?
    Ele já era um pesquisador renomado quando eu o conheci. Desde a graduação até o mestrado, assisti inúmeras palestras dele. Apesar de sermos conterrâneos, nesta época, não tivemos maior aproximação. A oportunidade de um contato maior só se apresentou quando eu já era professor de Matemática na Universidade Federal de Alagoas, em 1981. Tendo feito o mestrado na Federal de Pernambuco em Variável Complexa, eu me preparava para ir cursar o doutorado no IMPA. Um dia, estando em Maceió, ele me convidou para visitá-lo na casa de sua mãe, na Praça dos Martírios. Lá, tivemos uma conversa fraterna sobre as minhas expectativas acadêmicas. Ele, então, relatou a história da opção dele pela Matemática e do seu trabalho com a Geometria Diferencial, ressaltando a importância dos grupos que atuavam no País. Ele não me sugeriu seguir sua linha de pesquisa, mas aquela conversa inicial me deixou impressionado. Quando cheguei ao IMPA em 1982, eu já havia me decidido pela Geometria Diferencial. Desta forma, o processo de adoção do aluno conterrâneo foi natural: primeiro, Manfredo tornou-se meu orientador acadêmico, depois orientador definitivo da tese.
  • Relembra alguns acontecimentos de sua convivência com ele que tenham sido marcantes na sua formação ?
    Muitos fatos desta convivência com o Professor Manfredo foram marcantes para mim. Mas o que mais me impressionou, e impressiona até hoje, é o tratamento humano dispensado às pessoas que com ele convivem. Ele é sempre bem humorado, sabendo tirar dos eventos corriqueiros aspectos novos, inusitados ou jocosos. Ele é, ao mesmo tempo, suave e certeiro nas suas críticas. Lembro-me, por exemplo, de um fato ocorrido com um colega durante o período que em estudávamos no IMPA. Este aluno havia deixado o relatório de suas atividades, escrito em letra ilegível, sobre a mesa do Manfredo para que ele o lesse. Algum tempo depois, estávamos na sala de chá do Instituto. O Manfredo passou e vendo-nos, aproximou-se. Aí, disse de supetão: “Gostei muito daquela receita médica que você escreveu”. Em outra ocasião, um colega, que tinha sido recém-contratado como professor universitário, retorna ao IMPA e relata com entusiasmo sua nova experiência, enfatizando excessivamente quantos teoremas estava conseguindo comprovar. O Manfredo o escuta em silêncio, depois faz uma única pergunta: “E os alunos, em suas aulas, o que estão achando ?”. Ainda, outro fato interessante aconteceu quando eu estava no IMPA, fazendo um estágio de pós-doutorado. Naquele período, obtivemos vários resultados em colaboração. Certo dia, numa discussão, Manfredo, que é conhecidíssimo por sua harmoniosa visão geométrica, tentava me convencer de alguns resultados matemáticos. Observando que eu não aceitava os argumentos, ele diz: “Hilário, este teorema está correto, pois um resultado matemático não pode contrariar a natureza”. Assim, na primeira história, ele mostra a necessidade de se ter clareza até nos relatórios; na segunda, ele enfatiza que um professor deve ter sempre o aluno como foco principal da aula; e, na terceira, ele defende que um teorema deve se integrar harmoniosamente ao mundo matemático. Sempre com esse jeito bem pessoal , aprendi a ver o Manfredo se posicionando diante das pessoas. Desmistificando a imagem do cientista frio e racional, sua objetividade espirituosa revela o matemático e a pessoa humana, que ele é.
  • Como a influência do Professor Manfredo do Carmo se faz presente na sua atuação como formador de novas gerações de matemáticos ?
    O estilo de orientação do Manfredo também é muito singular. Enquanto orientador acadêmico, suas relações com o aluno ficam no plano mais informal. Após o exame de qualificação, ele cumprimenta o aprovado da seguinte forma: “Parabéns, agora podemos conversar sobre Matemática!”. A partir daí, inicia-se um diálogo mais efetivo, onde ele estimula a livre iniciativa do estudante e jamais lhe propõe um problema ou o ensina a resolver um cálculo. Na perspectiva do Manfredo, cabe ao orientador discutir apenas a idéia subjacente ao problema proposto pelo aluno. Esse professor também deve fornecer todo subsídio bibliográfico possível, para municiar a razão criativa do orientando na resolução dos problemas, que forem sendo produzidos pela sua pesquisa. No mais, embora ele parecesse estar à distância, na verdade, estava sempre atento, acompanhando-nos acadêmica e pessoalmente, a ponto de, muitas vezes, nos surpreender com seus telefonemas noturnos – sempre depois das 23 horas – para conversar sobre questões relativas ao nosso trabalho. Ser orientado pelo Manfredo é estar em exercício constante para a autonomia intelectual. Hoje, na minha prática docente, procuro estimular o crescimento do pensamento matemático dos meus alunos. Como modelo, tenho sempre em mente aquela didática humanística, ainda que rigorosa e desafiadora, que o Professor Manfredo do Carmo me possibilitou experienciar.
  • O que Manfredo do Carmo o ensinou sobre os limites e possibilidades da contribuição do cientista matemático em um país subdesenvolvido ?
    A primeira coisa que me vem à mente é que ele nos ensina a ter uma atitude de generosidade incondicional. Apesar de ter uma premiada carreira de sucesso individual, tendo orientado dezenas de teses, publicado livros traduzidos em vários idiomas, e tendo a condição de um cientista respeitadíssimo internacionalmente, ele é antes de tudo um scholar genuíno. Neste sentido, está sempre preocupado e comprometido com a comunidade matemática brasileira, cujo destino depende do crescimento dos grupos institucionais de pesquisa, espalhados em todo território nacional. Assim, o Professor Manfredo do Carmo está sempre pronto a atender quaisquer estudantes ou colegas que o procurem. Além disso, seus artigos são sempre escritos em colaboração com pesquisadores das mais diversas linhas de pesquisa da Geometria. Esse procedimento dialógico não só demonstra a total abnegação, a absoluta falta de egoísmo, mas também explica como ele, além do seu papel pioneiro, tem se mantido, ao longo desses anos, como uma liderança natural junto aos seus pares.

ARQUEIRO DA GEOMETRIA DIFERENCIAL

Neste ano de 1998, no X Encontro da Escola de Geometria Diferencial, a comunidade brasileira de matemáticos reune-se, na Universidade Federal de Minas Gerais, para homenagear os setenta anos do Professor Manfredo Perdigão do Carmo. No sentido de contribuir nessa homenagem, cabe dizer que, diante da História Humana, um homem que atinge os setenta anos ainda é jovem. Sua obra, por certo, encontra-se em pleno movimento, inacabada, palpitante, apontando, como uma flecha, para múltiplos alvos em novos horizontes. Desta forma, o pioneiro Manfredo do Carmo é ainda o jovem braço guerreiro, que segura o arco da Geometria Diferencial no Brasil, com força e determinação amorosa.

Em pouco mais de trinta anos, ele deu o tom das pesquisas da área, possibilitando não só visibilidade institucional, como também projeção internacional. Em comparação a outras áreas, a Geometria Diferencial tem uma história relativamente recente no País. Este fato aumenta ainda mais a importância do trabalho realizado por este pesquisador porque demonstra como a conjugação entre a fé, o compromisso acadêmico e a verdadeira vocação científica é capaz de produzir resultados surpreendentes em um ambiente aparentemente hostil. Em 1988, no seu discurso de homenagem aos sessenta anos de Manfredo do Carmo, o Professor Elon Lages Lima se referia a ele como sendo uma figura do mundo. Passados dez anos, Manfredo continua um cidadão universal, porém, cada vez mais, ele é um exemplo ímpar e inspirador para as gerações presentes e futuras de brasileiros.

Em 1988, entre os dias 22 e 26 de agosto, foi realizada no IMPA a Conferência de Geometria Diferencial em homenagem aos sessenta anos do Prof. Manfredo. Segue-se a transcrição do discurso do Prof. Elon Lages Lima, proferido na ocasião da sessão solene homenageando o Prof. Manfredo:

Nesta bela festa, em que comemoramos os sessenta anos do Professor Manfredo Perdigão do Carmo, traz-me emoção constatar que não somos apenas nós, os seus amigos mais íntimos, os seus companheiros cotidianos, que reconhecem o mérito científico de seu trabalho, a elegante clareza dos seus livros, a inspirada objetividade de suas aulas, a liderança natural que exerce sobre tantos alunos, ex-alunos e colegas por todo este país, onde ele soube implantar uma florescente e ativa escola de Geometria Diferencial, Manfredo é uma figura do mundo; seus amigos, colegas e colaboradores estão por quase toda parte onde a Geometria é cultivada. Um grande número deles se reúne hoje aqui para confraternizar e, nesta ocasião de homenagem, nos comunicar suas últimas vitórias nessa luta pela verdade e pelo conhecimento, que é a pesquisa matemática. Assim, orgulhoso pela estima e pelo prestígio desse companheiro de tantos anos e tantas lutas, me animo a fazer esta saudação, que muito tem de pessoal e evocativo.

Manfredo e eu nascemos em Maceió, e fomos vizinhos na infância e adolescência; nossas casas não distavam mais de três ou quatro blocos uma da outra. Mas não éramos muito ligados. Enquanto eu preferia os esportes e as brincadeiras, ele gostava de desenhar e era considerado pelos outros meninos como um intelectual porque possuía a maior coleção de revistas de quadrinhos da vizinhança. Que eu saiba nunca jogou bola. Quando tinha treze ou quatorze anos, tirou o primeiro lugar num concurso literário para alunos do ginásio, no qual minha irmã mais velha foi segunda colocada. Isto nunca vai ficar completamente esclarecido ma eu (que não tinha idade para concorrer), na época, achei que o resultado fora uma clara manifestação do machismo nordestino…

No terceiro ano científico, último antes da universidade, Manfredo e eu estudamos na mesma escola, na verdade na mesma classe do antigo Liceu Alagoano. Aí se tratava apenas de cumprir uma exigência legal, pois nada aprendemos no Liceu. Nossa vocação matemática foi despertada pelo Professor Benedito de Morais, que lá não ensinava.

Depois, como tantos matemáticos brasileiros, antes e depois dele, Manfredo foi estudar Engenharia. Formou-se no Recife, em 1951. Na Escola de Engenharia concentravam-se os professores que tinham atração pela Ciência e a cultivavam com o respeito e a adoração dos amadores. Eram estudiosos de Matemática e de Física, procuravam transmitir aos alunos o sentido da importância dessas matérias, sem contudo aprofundarem-se eles próprios o suficiente para lhes darem contribuições originais. Esse tipo de atitude, bastante difundida nos grandes centros universitários do Brasil, já durava quase um século. Mas o país amadurecia. Os jovens estudantes já não se satisfaziam apenas com adquirir passivamente os rudimentos das teorias científicas. Queriam ir mais fundo, aprender coisas mais modernas. Queriam, se possível, dar também suas próprias contribuições. Na década de 50 brotava a pesquisa matemática no Brasil, de forma incipiente, porém com energia. Vibrações dessa energia chegaram, de alguma forma ao Nordeste, em particular à Escola de Engenharia de Recife.

Um ano antes de se formar em Engenharia, de férias escolares em Maceió, Manfredo de encontrou comigo. Eu estudava Matemática em Fortaleza. Combinamos estudar juntos Análise e Álgebra Linear, o que fizemos diariamente, durante dois meses. Depois vim para o Rio e ele trabalhou pouco mais de um ano coo engenheiro em Alagoas, o suficiente para confirmar que sua vocação era mesmo a Matemática. Foi Professor Assistente na Universidade de recife de 1955 a 1958. Nesse período, começou a se interessar especialmente por geometria e, de modo mais preciso pela geometria Diferencial. Em 1958 obtive meu doutorado em Chicago e, pouco antes de voltar para o Brasil, recebi carta de Manfredo, de quem não tinha notícias desde alguns anos. Combinamos nos encontrara em Fortaleza, em julho de 1958, por ocasião de meu regresso. Então Manfredo me falou de seus planos. Queria doutorar-se em matemática, na área de geometria Diferencial. Mostrou-me alguns trabalhos que estava lendo e comentou sobre o desconforto que sentia diante das generalidades tão abstratas, por trás das quais não conseguia perceber um objetivo definido. Disse-lhe então que a Geometria Diferencial moderna não tinha necessariamente que ser tratada daquela forma. Mencionei-lhe Chern, que tinha sido meu professor em Chicago e combinamos um plano de ação, que ele seguiu, aliás, com muito mais eficácia do que ambos havíamos previsto.

Em 1959, Manfredo obteve uma bolsa de estudos para estagiar, durante cerca de um ano e meio, no IMPA, onde eu estava começando minha carreira. Nessa época, junto com outros estagiários, cumpriu um programa de estudos cuja parte principal foi um curso de Topologia que dei, com base no livro de Seifert e Threlfall, seguido do “Fibre Bundles”de Steenrod. Com essa preparação ele seguiu para Berkeley, em 1960, a fim de estudar com o renomado geômetra S.S.Chern.

Em Berkeley, exibindo já aquela objetividade, aquela firmeza de propósito, que costuma esconder sobre a suavidade de suas maneiras e que é a caraterística principal de sua maneira de ser, Manfredo fez duas coisas importantes: primeiro, conquistou a simpatia, a confiança e absorveu os sábios ensinamentos de Chern (sobre a matemática e como conviver com os matemáticos). Ainda hoje se percebe em Manfredo a marca deixada por Chern, não apenas nos trabalhos que escreve como também nas apreciações e julgamentos que emite. A segunda coisa importante foi queimar etapas; chegar ao objetivo ao longo de uma geodésica minimizante. Lembro-me que, ao visitar Berkeley por dois meses, no início de 1961, estive freqüentemente em sua companhia e, como não podia deixar de ser, conversamos bastante sobre cursos que ele seguiria, discutindo opções e traçando roteiros, às vezes longos e ambiciosos. Poucos meses depois, no Brasil, recebi carta dele onde me contava as escolhas feitas. Bem caracteristicamente, tinha seguido um caminho mais direto, mais condizente consigo próprio. Em fevereiro de 1963, apenas dois anos e meio depois de chegar a Berkeley obtinha o seu doutoramento, com uma teses que publicou, nada menos do que no Annals of Mathematics.

Voltando ao Brasil, Manfredo ficou ainda durante dois anos na Universidade do Recife, de onde saiu para a recém criada Universidade de Brasília. Novamente nos encontramos e juntos lutamos, com tantos outros companheiros, pela realização do sonhe de ter, em nosso país, uma Universidade, com U maiúsculo. Infelizmente, porém, a incompreensão e a intransigência que prevaleciam em 1964 e 1965 assim não o permitiram. Saímos todos de Brasília. Manfredo ficou um ano em Fortaleza, dois anos com bolsa Guggenheim em Berkeley e finalmente, em 1969, voltou para o IMPA, onde permanece até hoje, salvo por afastamentos temporários, o mais longo dos quais foi um ano com bolsa de Pós-doutorado, em 1979.

Neste breve relato sobre a vida e a carreira de Manfredo, certamente cometi o pecado de falar de mim mesmo mais do que devia. É que foram muito freqüentes nossos encontros. Minha visão não pode ser outra se não a que tive através desses contatos. Mas, a partir de 1969 quando passamos a nos ver praticamente todos os dias no IMPA, quando passamos a trabalhar juntos pelas mesmas causas e conviver com os mesmos problemas, a partir daí é possível falar dele sem falar de mim mesmo.

Os dois anos de Bolsa Guggenheim foram cruciais para a definição de Manfredo como matemático. Daí data seu interesse pelas superfícies mínimas, registrado em seu trabalho conjunto com Chern e Kobayashi. Voltando ao IMPA, deu início a um trabalho seguro, gradual e sem alardes, durante quase vinte anos consecutivos, do qual resultou, como disse acima, uma importante escola de Geometria Diferencial em nosso país.

O matemático polonês Zygmund Janisewski, um dos grandes pioneiros da escola matemática que floresceu em seu país a partir da primeira guerra mundial, embora falecido prematuramente aos 31 anos, disse certa vez, ao fundar a conhecida revista Fundamenta Mathematicae: “É melhor lidar com a teoria dos conjuntos do que com qualquer outro assunto pois, se quisermos escrever trabalhos sobre Matemática Clássica, primeiro devemos atingir o nível do que esta sendo feito no estrangeiro – isto nos limita a um papel secundário, enquanto que no campo da teoria dos conjuntos nos podemos começar em pé de igualdade com os outros; a satisfação que resultará de criarmos coisas novas será então um grande impulso para os nossos jovens matemáticos”.

Evidentemente, o princípio subjacente à afirmação de Janisewski é valido em geral. Ele se aplica certamente ao Brasil. A teoria dos conjuntos (que era nova naquela época) é apenas um exemplo. Em países onde não há tradição científica, novos grupos de pesquisa devem formar-se em torno de teorias novas. Isto mesmo foi feito aqui no IMPA, com Sistemas Dinâmicos, mas Manfredo fez tudo ao contrário. Geometria Diferencial é um assunto clássico com suas raízes seculares fincadas no Cálculo, embora, é certo, tenha recebido periodicamente fortes influências do desenvolvimento das demais áreas matemáticas, especialmente a Topologia, a teoria dos Grupos de Lie, a Análise Funcional, etc. Sem dúvida seu trabalho contou com a colaboração de visitantes ilustres, alguns dos quais aqui presentes, que participaram de forma ativa, com suas presenças e seu trabalho, nesse processo. Embora não os mencione explicitamente aqui, eles sabem que nossa gratidão é perene.

Além de suas pesquisas, sobre as quais Lucas Barbosa fará em seguida uma análise mais detalhada, Manfredo orientou 16 teses de doutorado nesses dezenove anos de IMPA. Seus alunos estão por todo o país, continuando o trabalho de solidificar e ampliar o estudo de Geometria Diferencial. Numerosos como são, eles dão uma idéia do poder de comunicabilidade do mestre. De fato, as aulas de Manfredo e, igualmente, suas exposições em seminários têm um estilo próprio, no qual os detalhes irrelevantes nunca são mencionados, as figuras têm primazia sobre as fórmulas e as idéias motivadoras, os segredos por trás dos argumentos formais, têm primazia sobre todo o resto. Um dos seus ex-alunos, jocosamente, uma vez me disse: “Já perdi de conta os cursos que fiz com Manfredo. Mas não me lembro de tê-lo visto jamais provar um teorema”. Em seguida, acrescentou: “Mas as explicações que dava e os comentários que fazia sobre as razões pelas quais os teoremas eram verdadeiros nos levavam às demonstrações por nós mesmos ou ao claro entendimento delas quando as líamos”. Claro que isto é um pouco exagerado. Suponho que Manfredo certamente já deve ter demonstrado algum teorema em classe. Suponho. Se não o fez, isto não deve fazer muita diferença, poisas provas estão lá nos seus livros. Que são vários, que são lidos e que são apreciados. Principalmente porque são simples, honestos e abordam os tópicos indispensáveis sem preced6e-los de generalidades que afastam os leitores menos pacientes. Os livros que escreveu ajudaram e estão ajudando a formação de jovens matemáticos no Brasil, na América, na Europa e em outros continentes.

Pelos excelentes trabalhos de pesquisa que publicou, pelos alunos que formou, pelos livros que escreveu e, acima de tudo, pelo caráter bondoso, paciente, modesto e determinado que possui, Manfredo Perdigão do Carmo, amigo de infância, colega de trabalho, companheiro de lutas, grande Manfredo, você certamente merece todas as homenagens que lhe são prestadas hoje e muito mais”.

fonte: http://www.mat.ufmg.br/eventos/escgeom/manfredo.html

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